A cronobiologia da Dor: a relação entre o ciclo circadiano e a dor


Existem diversos aspetos fisiológicos do corpo humano que variam em intervalos regulares de, aproximadamente, 24 horas. Este facto é conhecido como ritmo circadiano, do latim "circa" (à volta) e "diem" (dia) e não afeta apenas os ciclos de sono-vigília, como também influencia outros parâmetros, como a temperatura corporal, a produção hormonal e o metabolismo.1

Além destes fatores, verificou-se que o ritmo circadiano pode ter influência em diferentes tipos de dor, quer crónica, quer aguda.2,3

A dor é uma sensação desagradável associada a uma lesão real ou potencial dos tecidos e é, por conseguinte, um sistema de alarme. A International Association for the Study of Pain (IASP) define a dor crónica como a "dor que persiste para além da cura da lesão que lhe deu origem, ou que existe sem lesão aparente”.3

Como referido anteriormente, a dor é um sinal que deteta potenciais danos nos tecidos, conhecida como capacidade nociceptiva, sendo uma resposta adaptativa. Noutras situações, a dor resulta da resposta do próprio organismo a um dano ou a uma infeção, o que pode desencadear uma resposta inflamatória. Por sua vez, a dor pode não estar relacionada com uma lesão real, mas sim com alterações neuronais, que transmitem o sinal ao cérebro. Neste último caso, trata-se de dor neuropática, uma vez que ocorre ao nível do sistema nervoso.4


A dor não é linear

Os doentes descrevem, frequentemente, uma maior intensidade ou um maior número de episódios de dor, em determinadas alturas do dia, concordantes com o ciclo circadiano. Constatou-se que, determinadas moléculas sinalizadoras e neurotransmissores com níveis oscilantes ao longo do dia, estão envolvidos na transmissão da dor, pelo que a dor pode variar de intensidade consoante os níveis dessas moléculas.1

A perceção da dor é um processo de sinalização complexo, que tem início no tecido afetado, em que os sinais nervosos são transmitidos para o cérebro, onde são processados. De acordo com a origem do sinal nociceptivo e as vias envolvidas na sua transmissão, ocorrem picos de intensidade em diferentes alturas do dia.1,3

Um exemplo de dor aguda, é a dor associada à cólica biliar, que é mais intensa à noite, ao passo que a dor pós-operatória atinge, geralmente, o seu pico, durante manhã.2

A fibromialgia, a nevralgia do trigémeo e as enxaquecas apresentam um pico de dor e de frequência de episódios dolorosos durante a manhã, ao passo que, a dor neuropática e a dor da articulação temporomandibular aumentam ao longo do dia, atingindo um pico ao final da tarde ou à noite. Por último, a dor associada à cefaleia em salvas pode apresentar maior intensidade à noite.2


Ritmos circadianos e dor: uma via de dois sentidos

A relação entre o sono e a dor aparenta ser bidirecional.5

A dor crónica tem sido caracterizada como uma das principais causas de alteração do ciclo circadiano, através da modificação da expressão de alguns genes. Além deste fator, foi encontrada uma relação direta entre a privação de sono e os níveis de dor no dia seguinte.5

Embora a relação entre a dor e o ritmo circadiano seja complexa e de ainda pouco conhecimento, sabe-se que o sistema opioide endógeno, que regula a dor e a resposta ao stress, pode variar ao longo do dia, o que pode ter alguma influência no processo.3,5

Além da influência do sistema opioide endógeno, a melatonina, que desempenha um papel fundamental na manutenção do ciclo circadiano, pode, também, estar envolvida nesta interação.1

Os níveis desta hormona atingem o seu máximo durante noite e permanecem elevados durante toda a fase noturna, embora, durante o dia, se encontrem praticamente ausentes. O seu mecanismo não está, ainda, totalmente esclarecido, no entanto a melatonina apresenta efeitos analgésicos nos processos inflamatórios, bem como na inibição da atividade nociceptiva. A administração de melatonina no período pré-operatório, pode reduzir a intensidade da dor durante o período pós-operatório.1

Além desta hormona, o cortisol também desempenha um papel relevante na regularização da resposta à dor aguda, e pode estar envolvido no surgimento da dor crónica. Os níveis de cortisol aumentam nas horas que antecedem o despertar. O cortisol, também conhecido como a hormona do stress, pode potenciar o desenvolvimento de dor crónica, em situações em que os níveis de stress sejam elevados.3

O neurotransmissor glutamato pode estar, também, relacionado com ambos os sistemas. Em primeiro lugar, está envolvido na regulação do ciclo circadiano, dado que participa na neurotransmissão das células fotossensíveis da retina. Os seus níveis atingem o máximo por volta das 23 horas e diminuem ao longo do dia. Esta molécula desempenha, igualmente, um papel de mediador na transmissão da sensação de dor.1


Cronoterapia da dor

A cronoterapia é uma prática que consiste em administrar a terapêutica a horas específicas ou em influenciar diretamente o ciclo circadiano, seguindo a fisiologia circadiana.5 Assim, o principal objetivo da cronoterapia, é determinar os horários ideais de tratamento, para aumentar a eficácia e diminuir a toxicidade.3

Em casos de dor inflamatória, relacionada com doenças autoimunes, o tratamento consiste, habitualmente, na utilização de imunossupressores, cuja eficácia poderá ser otimizada de acordo com o período de administração. A título de exemplo, a toma de imunossupressores, como os glucocorticoides, à noite, demonstrou melhorar os sintomas da artrite reumatoide durante a manhã seguinte.5

Outra prática, que tem vindo a ser abordada nos últimos anos, é a terapia com luz brilhante, que atua no sistema circadiano e demonstrou reduzir, de forma significativa, os níveis de dor com apenas uma aplicação por semana.5

A luz verde ou azul é, frequentemente, utilizada neste tipo de terapia, embora seja esta última a mais eficaz. Curiosamente, a luz vermelha induz o efeito contrário, aumentando a sensação dolorosa. A forma como esta terapia interage com a perceção da dor, poderá estar relacionada com a sua influência no tálamo, onde a sensação de dor é processada.5

A cronobiologia da Dor: a relação entre o ciclo circadiano e a dor


Referências

  1. Chu Y, He H, Liu Q, Jia S, Fan W, Huang F. The Circadian Clocks, Oscillations of Pain-Related Mediators, and Pain. Cell Mol Neurobiol. 2023;43(2):511-523. doi:10.1007/s10571-022-01205-8
  2. Knezevic NN, Nader A, Pirvulescu I, Pynadath A, Rahavard BB, Candido KD. Circadian pain patterns in human pain conditions – A systematic review. Pain Practice. 2023;23(1):94-109. doi:10.1111/papr.13149
  3. Smith RG. The Pattern, Flow, Tempo of the Importance of Circadian Rhythm of Pain, And Analgesic Treatments. Journal of medical-clinical research & reviews. 2022;6(4). doi:10.33425/2639-944x.1269
  4. Sepúlveda JD. Definiciones y clasificaciones del dolor. ARS MEDICA Revista de Ciencias Médicas. 1994;23(3). Accessed February 7, 2024. https://www.arsmedica.cl/index.php/MED/article/view/1034
  5. Warfield AE, Prather JF, Todd WD. Systems and Circuits Linking Chronic Pain and Cir-cadian Rhythms. Frontiers in Neuroscience. 2021;15:705173. doi:10.3389/FNINS.2021.705173